Lá se vai meu querido Mestre, deixando um buraco em nossas vidas e na música brasileira e mundial.
Homem histórico, amável, amigável, carinhoso. Exemplo de ser humano, de competência.
Ian Guest, nascido János Goiten, rebatizado como János Geszti, na Hungria, veio para o Brasil com a família em 1957 (12 de maio), como sobrevivente da 2ª Grande Guerra, e também da Revolução Húngara em 1956.
João Tostes e Ian Guest
Era uma criança inocente, como ele mesmo contava. Caíam bombas perto de sua casa, e ele se escondia em baixo da mesa, atrás das toalhas, achando que conseguiria se defender dos ataques. Pureza inconfundível.
Foi a primeira criança do planeta na qual o método Kodály de ensino da música foi aplicado desde o nascimento. Que sorte a minha, ter aprendido diretamente dele.
O próprio Kodály era amigo do pai de Ian, George Geszti, famoso pianista húngaro.
Lembro-me de que um dia mostrei uma foto de Kodály ao Ian e ele chegou a confundir com o pai.
Usou o condinome Átila, no Brasil, para assinar alguns trabalhos musicais.
Ian Guest e João Victor Tostes
A tradução de János é João, e depois de usar um pouco esse nome (sendo conhecido como João da Odeon, onde trabalhava), ele se olhou no espelho e disse não se reconhecer como João. Então, migrou de János (que se pronuncia “Iânos”) para Ian, passando então a ser conhecido e imortalizado como Ian Guest, tendo continuado a cravar seu nome nas mais variadas jornadas musicais de artistas brasileiros, desde Raul Seixas a Vinícius de Moraes, tendo conhecido e convivido com ícones como Baden Powell e João Gilberto.
Mais mineiro que muitos mineiros, amante declarado de Minas Gerais, relacionando o Clube da Esquina à música húngara, faleceu em sua cidade preferida, Tiradentes.
Quando foi estudar na Berklee, dizia que tinha sido o primeiro brasileiro a ir estudar lá.
Fascinado com a música brasileira e com a riqueza do que é feito aqui. Passou a amar a música popular, algo que desprezava. Dizia que na Hungria, todo mundo sabia tudo, ou seja, tinham teoria e entendiam de tudo, mas que não produziam nada. Mas aqui no Brasil, ninguém sabe nada, mas faz tudo.
Ian Guest na Berklee
Escreveu livros, mudou a forma de ensino da música brasileira. Foi professor dos professores. Poliu o conhecimento dos Mestres. Definiu simplicidade e coerência ao que parecia inalcançável.
Eu sou grato. Aprendi muito. E não foi só música, longe disso. A sensibilidade, o trato, o amor e o carinho derramado em tudo que fazia, a busca pela excelência, pela compreensão, pelo ensino, a forma de doação a tudo que se propunha a ensinar.
Tenho trechos de vídeos inéditos guardados por aqui. Não estão guardados no sentido de que nunca vou mostrar pra ninguém, mas sim pelo fato de que são tesouros. Relatos e detalhes da vida pessoal e musical, que tive a honra e o prazer de presenciar, vivenciar e gravar.
Guardei também partituras que, quando ele me deu, disse que eram inéditas, e era pra eu fazer o que quisesse.
Ian virou documentário, através dos olhos do Marcello Nicolato, que produziu pela Macaca Filmes “O imperfeccionista”.
João Victor Tostes, João Tostes e Ian Guest
Ian andava com uma câmera. Muitas vezes era ele que se lembrava de registrar o momento: “fica aqui, deixa eu tirar uma foto sua”, ou então, “vai com seu filho ali e deixa eu tirar foto de vocês”, ou, ainda, “pega a minha câmera aqui e tira umas fotos de mim com vocês”. Ele fazia questão de guardar os momentos.
Estudei com o Ian na Bituca, em Barbacena. Eu não era o aluno de ouro em nenhuma das matérias, aquele aluno que se transformaria no orgulho dos professores. Cheguei a passar por constrangimentos, algumas vezes, especialmente em momentos de prática de conjunto. Nada que tenha ficado visível aos olhos da maioria, mas por muitas vezes fui ignorado em minhas participações, naquilo que eu podia acrescentar. Não me foi dada a chance de mostrar o que eu poderia fazer, por exemplo, em algum momento de improviso.
E lembro-me perfeitamente, ao fim do dia da minha formatura, em que improvisei um solo na música que escolhi para me formar e, ao final, Ian veio no nosso palco (que, na verdade, estava à mesma altura dos convidados), e me abraçou. Me deu um forte abraço e falou ao meu ouvido: “João, você foi fantástico, eu adorei!”. Se virou pra mim, segurou meu rosto com as duas mãos e disse: “Que lindo solo de improviso, parabéns! Você é esplêndido, eu confio muito em você e na sua música. Você é especial para mim.”.
Ian Guest e João Victor Tostes
Me formei com ele em Musicalização através do Método Kodály e em Harmonia, um curso à parte. No dia da nossa última aula, ele me pediu pra tocar uma música. Era algo que todos os alunos deveriam fazer pra se formar. Comecei a tocar “Sons de Carrilhões” e ele disse: “não, essa não. Quero uma que você cante.”. Eu não canto, vocês talvez saibam. Bom, hoje em dia me arrisco e até já cantei em shows, mas não é onde me desenvolvi. Comecei a tocar e a cantar Blackbird, dos Beatles, e ele bateu palmas e convidou a turma pra bater palmas também, quando eu acabei. E falou: “é isso que estou falando, João. Bota isso tudo pra fora, ficou ótimo.”.
Imaginem como é ser entusiasmado, animado, reanimado, incentivado pelo seu Deus musical, pelo seu ídolo. Imaginem como é estar em um lugar em que alguns professores e alguns alunos te olham torto porque acham que você “toca menos”, que talvez você não deveria estar ali (porque pra entrar na escola, dizem, é preciso ter talento). Imaginem também, como é, neste mesmo ambiente, o Mestre dos Mestres ser um dos poucos que te dá atenção e te cativa, em toda aula, em todo encontro, em todo pós-aula.
Muitas vezes levei o Ian para o hotel, após nossas aulas. Era comum uma aula acabar e todos irem embora, exceto umas 3 ou 4 pessoas. Eu sempre era uma dessas pessoas. Eu ficava ali, ouvindo as histórias, ouvindo as músicas, vivenciando toda a paixão daquele homem pela música. Nessas idas para o hotel, quando eu o levava, ele continuava contando história. O seu repertório era infinito. Ele podia falar sobre qualquer assunto, contar de quando vivia a juventude com o Raul, de quando conheceu o Milton Nascimento, de quando o Vinícius de Moraes gostou de músicas que ele fez e colocou letra em cima da música, de quando estava sentado na cama do Djvan ensinando uma forma melhor de terminar uma canção.
João Tostes e Ian Guest
Ah, Ian Guest. Aquele homem que já começava a ter problemas sérios de audição e não compreendia mais algumas notas agudas. Perto do D5 ele já confundia um pouco, então não conseguia interpretar corretamente uma canção, solfejo ou exercício, porque fazia confusão e precisava ouvir novamente, brigar consigo mesmo. O homem que era a própria música, naquele momento, não conseguindo mais interpretar a música por uma falha no ouvido. Lembro do choque de ouvir isso dele, no dia que ele contou. Chorei na hora, no meio da aula. Mas ele contou sem constrangimento ou tristeza. Isso não era parte da vida do Ian. Ele contou sorrindo, contou mostrando o quanto encarava qualquer coisa com toda leveza e calma.
Fiz uma página pra ele no Facebook. Apareceram joias por conta dessa página. Por exemplo, encontrei um “neto” do Ian. Pois é, não é simples de explicar. Mas Ian ajudou um homem necessitado, e que cuidava sozinho dos filhos. Ian os ajudou da forma que podia, e os filhos deste homem sobreviveram. E um destes filhos voltou para agradecer ao Ian, através da página. E mandou muitas fotos, muitos relatos, muitas coisas que não existem em lugar nenhum. É claro que eu fiz questão de ir até o Ian e mostrar a ele todo aquele material. Ele se emocionou por se lembrar de tudo aquilo, e também por ser chamado de avô: era assim que o filho do homem que ele ajudou se referia a ele. “Quero poder ver meu vô de novo, dar um abraço nele. Mostra essas fotos pra ele, por favor.”.
Também recebi fotos maravilhosas, de muitos momentos da vida do Ian com diversas pessoas, fotos pessoais de gente que passa lá na página até hoje para enviar (no facebook: Fãs de Ian Guest). Se você também tem fotos, vídeos e histórias, se quiser compartilhar, será um prazer receber esse material.
No ano passado, tive a chance de fazer mais um curso com ele, dessa vez online, de Arranjo, através do Nelson Faria. Não sabia que seria a despedida.
Não foi. Eu tenho tanta lembrança do Ian, tanto carinho, que nada nesse mundo seria capaz de apagar qualquer palma que ele bateu de minha memória.
Perdemos ele em vida, mas ele é um herói para sempre.
Ian Guest
Deu aulas para inúmeros grandes artistas, como Rafael Rabello, Almir Chediak, Toninho Horta, Zélia Duncan. Deu aulas para João Tostes.
Gratidão às forças desse planeta por terem me permitido conhecer pessoa de tamanha beleza, profundidade e profissionalismo como o Ian, e por ter aprendido tanto com o exemplo e a dignidade de alguém que, para mim, era a própria música.
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